O trecho está na abertura do livro, é a apresentação do personagem principal. Este, por sua vez, é uma metáfora do (que o autor considerava) arquétipo do brasileiro (do alvorecer do século passado). O livro é exatamente sobre isso. O trecho define o livro todo, portanto a temática do livro é o seu contexto, para não irmos mais adiante, citando a conjuntura sócio-cultural brasileira de então.
Independentemente das flexões verbais, Mário de Andrade não fala dos brasileiros como outros (não eu). As entrelinhas são claras: nós brasileiros somos assim (como Macunaíma). Eu sei que os passos lógicos acima foram longos e algumas conexões podem estar um tanto distantes. Se for preciso, podemos nos alongar depois. O que quero mostrar é a diferença entre:
- Mi hija casada com um cholo, jamás; e
- Nosotros cholos sí que conocemos esta tierra y sus secretos.
A mesma palavra tem uma carga depreciativa enorme no primeiro caso e irônica no segundo. Na primeira desvaloriza, na segunda valoriza. Na primeira, cholo é o que é diferente de mim, fora de mim, o não-eu, e eu o deprecio em razão da diferença entre ele e eu; na segunda cholos somos todos, eu incluído, e reconheço uma qualidade derivada da igualdade entre nós, apesar de que nos discriminem. A discriminação por parte dos "outros" dobra o mérito: se somos nós os bons, aqueles "outros" que nos discriminam serão os maus.
Em vista do que vai acima, quais são as abordagens possíveis para uma tradução do Macunaíma?
- Eu argentino digo que nós argentinos somos assim: impossível, os personagens e passagens não retratam o argentino arquetípico.
- Eu argentino digo que eles os brasileiros são assim: impossível, violaria a relação de pertinência entre o autor e os fatos e personagens retratados.
- Eu brasileiro digo (em Espanhol) que nós brasileiros somos assim: única opção viável. Nesse caso, não traduziria a palavra “crioulo”. Bem como não traduziria os nomes indígenas, Macunaíma continuaria vivendo as mesmas aventuras pelas mesmas cidades brasileiras.
O leitor que desconhecer o contexto perde bastante. Mas isso não é demérito da tradução, é característica da obra original. Garanto que muitos brasileiros também deixam de perceber sutilezas da obra. Assim como os estrangeiros tendem a sofrer mais com a perda das minúcias, pela distância cultural, também os brasileiros de hoje, à distância de um século do contexto original, tendem a compreender menos da obra.